Memórias de Vida

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Fábio Lourenço Rosendo

Todo dia era assim. A manhã mal tinha raiado e o metalúrgico Fábio Lourenço Rosendo, homem rígido de poucas palavras, calejado no trabalho e na vida, já estava de pé, pronto para pegar de novo no batente. Mas, antes de sair de casa, quem diria, cumpria sempre seu pequeno ritual: entrava silenciosamente no quarto das três filhas e, com uma delas a tiracolo, retornava para a cama. Ali a esposa Ananete ainda dormia. No espaço vago e quentinho, pousava a menina. Cada dia era a vez de uma. Era feliz, Fábio — e o sabia.

Assim eram os arroubos de afeto que escaparam pelas frestas da personalidade dura de um homem quase impossível de parar. Fábio era dedicado ao trabalho, cresceu respeitando o valor da labuta. E não apenas na fábrica — a casa da família, erguida na Vila Buenos Aires, em São Paulo, atrás de um barraco improvisado, mas com direito a horta e poço, materializou-se graças às suas mãos habilidosas.

No começo, o bairro não tinha água, luz ou asfalto — não muito diferente de Viçosa, interior de Alagoas, onde nasceu e casou. Os três primeiros filhos, homens, vieram lá. Mas a seca destruiu a colheita e forçou a família a migrar. No caminho até a Vila Buenos Aires, retirantes que eram, fixaram-se em uma fazenda em Rancharia, no interior. Ali, duas filhas chegaram. E houve ainda a parada na Vila Maria, onde nasceu a última.

A família se completou, o trabalho o deixava feliz, mas jamais esqueceu da terra. Mesmo em São Paulo seguiu plantando e criando: mandioca, milho, abóbora, galinhas e patos. Aos domingos, quando não batia cartão na fábrica nem cuidava da horta e dos animais, saía para vender laranja e mexerica no campinho de futebol do bairro. Cada centavo era colhido pela filha Aparecida e parava direto no bolso de Ananete.

Na Vila era figura conhecida. “Ele costumava caminhar e ficava de papo”, conta Aparecida. “Quando a gente ia na feira era um sufoco. Todo mundo conhecia ele.” Dizia que um homem para ser completo precisa saber ler e escrever, senão é um cego no mundo. Analfabeto, se virava reconhecendo as formas dos nomes dos ônibus e de palavras úteis. Ainda assim, foi promovido a chefe de seção na fábrica. A esposa às vezes reclamava: Fábio trabalhava demais. Ele respondia levando a amada ao circo para assistir à dupla Tonico e Tinoco.

A aposentadoria chegou compulsoriamente aos 55 anos: foi atropelado voltando do serviço. Passou oito dias em coma. mas pouco depois já estava carpindo seu jardim e reformando a casa — trabalhar era sua forma de se comunicar com o mundo. Que o digam as visitas, todas saíam de sua casa com rosas, margaridas e copos de leite plantados por ele.

Foram as plantas, aliás, que o ajudaram a suportar a morte da esposa. Para esquecer, Fábio labutava. Só um infarto fulminante foi capaz pará-lo. Partiu dia quatro de junho. Deixou cinco filhos, 11 netos, 12 bisnetos e uma tataraneta. Na memória deles, ficou a figura do velhinho de poucas palavras, mas cheio de amor. Chapéu de feltro, 1,50m de altura e um coração de gigante.

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