Quando tinha 17 anos, Natércio mudou de nome e de idade. Trabalhando como faz-tudo para uma família rica de João Pessoa — cuidando do jardim, do cachorro, e sendo chofer — fora detido com a patroa por dirigir sem a carteira de motorista, de todo modo indisponível para si.
Na verdade não tinha documento algum e estava a milhares de quilômetros dos pais e dos oito irmãos desde que deixaram a vida dura no semiárido em Patu, Rio Grande do Norte, para viver no interior de São Paulo. Na época o menino ficara para trás. Pequeno e inteligente, foi chamado pelos donos da terra onde viviam para trabalhar em casa, na capital da Paraíba.
Mas na correria do registro tardio dos filhos em Gardênia, São Paulo, seus pais esbarraram em um funcionário com dificuldades auditivas. Natércio acabou virando Anatelson, seu irmão Adélcio virou Adelson, Nilton passou a se chamar Milton e assim por diante. Um aninho a mais na carteira de identidade e o garoto já podia voltar a dirigir.
Faria isso por toda a vida, mas não ali. Demitido após uma uma resposta atravessada para sua empregadora, precisou ainda esperar oito dias naquela casa pelo ônibus ao sul, para reencontrar sua família. Sentia falta deles. Já reunidos, migraram em definitivo para a metrópole paulistana. O jovem ajudava o pai nos trabalhos de guarda noturno, mas logo pegou um bico em uma oficina.
Lá conheceu um dono de caminhão-cegonha e passou a dirigir para ele. Depois tornou-se sócio e por fim, após juntar dinheiro, assumiu o negócio por completo. Ficou famoso na estrada ajudando quem precisava com alguma peça extra, ou mesmo consertando o motor necessitado ali na hora. Conhecido como “prefeito de Caicó”, ou mesmo “prefeitinho”, não possuía a palavra não no seu vocabulário.
Mesmo com a rotina intensa de viagens conseguiu ser um bom marido para Maria Zélia e pai presente para os três filhos: Fábio, Natércio e Ana Flávia. Ajudou nos cuidados a eles enquanto a mulher trabalhava fora, primeiro em uma confecção e depois vendendo roupa em uma feira. Era fácil prever o tipo de avô que se tornaria: completamente apaixonado pelos cinco netos de sangue e pela netinha do coração.
Seu jeito brincalhão era conhecido. Amigo de todo mundo, tinha resposta na ponta da língua e uma saída pronta para qualquer situação. E quando dizia, galhofeiro, que era primo de Lula ou da Dilma, havia quem acreditasse. Só não conseguiu contornar a passagem do tempo e o sabia. Nas viagens de caminhão com a esposa mostrava os senhores sentados na calçada e dizia “hoje são eles, amanhã sou eu que vou precisar parar de trabalhar”.
Não se conformava, mas foi assim. Um dos filhos assumiu eventualmente o caminhão, enquanto Anatelson ainda ajudava a esposa na feira, já aposentado. Quando nem isso pôde mais fazer, encontrou o álcool. Na época adotou — ou fora adotado? — pela cadelinha Iracema. Ela ia com ele para todos os lugares e o trazia até o portão, até um dia entrar e nunca mais sair.
Sobreviveu a três embolias pulmonares antes de partir após uma parada cardíaca e 32 dias de coma. Amou a vida e quis tirar dela a última gota, colhendo frutas na liberdade da estrada. Mas a sua hora de descansar, e de habitar as melhores memórias de quem amou, havia chegado.