Memórias de Vida

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Mr. Catra

Wagner Domingues Costa nasceu pobre, cresceu com conforto e morreu estrela. Em apenas 49 anos, o homem que ficou conhecido como Mr. Catra estudou Direito, gravou dezenas de álbuns, fez milhares de shows, embarcou em turnês internacionais, criou 32 filhos e marcou a vida de muito mais gente do que poderia sonhar.

Acolhido ainda bebê na casa onde sua mãe trabalhava e lá tratado como igual, pôde se dar o luxo de sonhar bem mais alto que as outras crianças do Morro do Borel. O conforto de um lar estruturado na rua Dr. Catrambi (daí o apelido) e o “ter de tudo”, privilégios tão desperdiçados, nas mãos dele tornaram-se oportunidades imperdíveis.

Como a de estudar em bons colégios e lá aprender inglês e francês, línguas importantes para os passos que viriam depois. Sua inteligência e curiosidade ainda permitiriam mais tarde absorver noções de alemão e hebraico em suas andanças. Chegou a se debruçar sobre as minúcias do Direito, apesar de não ter exercido a profissão.

Porque foi na música que Catra encontrou parte das respostas que procurava. O passado pouco conhecido como guitarrista da banda de rock O Beco deu lugar ao rap e finalmente ao funk, gênero que ajudou a popularizar de um jeito bem-humorado e do qual se tornaria um dos maiores expoentes por duas décadas.

Aqueles foram tempos intensos. A voz grave e potente, a postura debochada e as letras irreverentes lotavam até cinco shows por dia em todo o Brasil. E ele não demorou a usar seu prestígio para ajudar outros artistas. Tati Quebra-Barraco, Valesca Popozuda, MC Gui e outros devem parte de suas carreiras a essa generosidade.

A célebre intimidade de polígamo desafiava o senso comum, cheia de momentos em família e de carinho e atenção com os 32 filhos, de nove diferentes mães. A convivência pacífica entre as três esposas também era testemunho da funcionalidade do arranjo pouco ortodoxo. A quantidade de shows foi rareando conforme a prole aumentou — era preciso mais tempo em casa.

A intensa religiosidade foi outro aparente paradoxo encarnado e explicitado em vida. Contrapondo a explicitude sexual da sua música existia um homem de fé, particularmente interessado pelo judaísmo desde que visitou Israel, e sem pudores ao falar de Deus reservadamente e até no palco.

E talvez não tenha sido mera coincidência que a figura por trás de tanto fascínio e contradição tenha partido por conta de um câncer no estômago justamente na chegada do Rosh Hashanah, o ano-novo judaico. Bom e doce, se foi como o novo período chegou, segundo a tradição que abraçou com tanto amor. Deixou, além dos filhos e esposas, quatro netos e milhares de fãs órfãos.

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Maria Rosa de Oliveira

No velório de Rosa alguém chegou a perguntar se tratava-se de uma artista, tamanha multidão que dela foi se despedir. Era apenas o justo reconhecimento à pessoa calorosa e dada à bondade e à generosidade que foi em vida. Aos bolos divididos com os vizinhos nas quatro décadas de Guarulhos, assistindo a cidade surgir ao redor do lar construído tijolo a tijolo, os papos no muro, as crianças entrando e saindo das casas. 

Mas também aos cuidados com a família no interior de Minas. Era madrinha de quase todos os sobrinhos, mas ajudava com material escolar até quem não era seu afilhado. Conquistara também os sogros, Celina e Idelfonso, para quem tornou-se filha zelosa. 

Talvez a propensão para o cuidado desinteressado encontrasse raízes na infância paupérrima em Estiva, interior mineiro. Foi marcada pelo espírito trabalhador da mãe, Izalina, suas longas viagens atrás de lenha para cozinhar, e pelo senso de retidão do pai, Gustavo. Passada a escassez, Rosa fez questão de dividir o que tinha. Quando perguntada por que fazia tanto pelos outros e tão pouco para si, a resposta vinha pronta: “quem não vive nessa terra pra servir não serve pra viver”. 

Chegou a São Paulo ainda menor de idade, mas determinada a trabalhar em fábricas para dar uma vida melhor aos pais e irmãos, filha mais velha que era. Raimundo surgiu em sua vida nesse momento. Casaram-se respeitando pudor e tradição, e viveram uma parceria apaixonada. Arianos, se amaram e brigaram a vida inteira. 

Foram três as filhas: Rosana, Rosângela e Regiane. Raimundo, consumido pelo serviço e quase sem férias, pediu para que parasse de trabalhar e focasse nas crianças. Rosa as levava e buscava no colégio particular pago com sacrifício, e as fazia estudar, tomando textos e tabuadas. Estudara apenas até a quarta série do primário, mas logrou deixar com o marido um império para as filhas, entre educação e bens materiais.

Quando a última se casou, mudou-se por pressão de Raimundo para Cambuí, próximo a Estiva. Era sonho dele cuidar de galinha, de porco e de vaca. Mas depois que ele teve um câncer na garganta e um derrame, o casal voltou para São Paulo, dividindo o tempo entre a capital e o interior de Minas Gerais. Ela também tinha a saúde frágil, mas cuidava do marido.

Rosa gostava de jogar no bicho, mas pedia perdão a Deus depois. Tinha um propósito, o de ajudar as pessoas com o dinheiro. E ganhava, às vezes uma atrás da outra, suficiente para atrair o olho gordo. Com os prêmios, pôs telhado e piso na casa dos pais, comprou rádio para ele e lençol para ela, reformou o banheiro da sua casa. Fez o que pôde, sem arrependimentos. E sabia estar fazendo o certo.

Em uma virada do destino perdeu Raimundo e sete meses depois sua mãe, Izalina. Essa provação revelou-se mais do que podia suportar. Fragilizada pelo fígado e pelo coração, partiria quatro anos depois.  Já tinha sete netos então: Rebecca e Rafaella, Larissa, Rayani, Vinícius e Rafael. Seu pai, prestes a completar 90 anos, tocou violão e cantou em seu velório de artista. “Precisava cantar essa musiquinha porque senão o coração ia explodir”, lembra ele.

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Fábio Lourenço Rosendo

Todo dia era assim. A manhã mal tinha raiado e o metalúrgico Fábio Lourenço Rosendo, homem rígido de poucas palavras, calejado no trabalho e na vida, já estava de pé, pronto para pegar de novo no batente. Mas, antes de sair de casa, quem diria, cumpria sempre seu pequeno ritual: entrava silenciosamente no quarto das três filhas e, com uma delas a tiracolo, retornava para a cama. Ali a esposa Ananete ainda dormia. No espaço vago e quentinho, pousava a menina. Cada dia era a vez de uma. Era feliz, Fábio — e o sabia.

Assim eram os arroubos de afeto que escaparam pelas frestas da personalidade dura de um homem quase impossível de parar. Fábio era dedicado ao trabalho, cresceu respeitando o valor da labuta. E não apenas na fábrica — a casa da família, erguida na Vila Buenos Aires, em São Paulo, atrás de um barraco improvisado, mas com direito a horta e poço, materializou-se graças às suas mãos habilidosas.

No começo, o bairro não tinha água, luz ou asfalto — não muito diferente de Viçosa, interior de Alagoas, onde nasceu e casou. Os três primeiros filhos, homens, vieram lá. Mas a seca destruiu a colheita e forçou a família a migrar. No caminho até a Vila Buenos Aires, retirantes que eram, fixaram-se em uma fazenda em Rancharia, no interior. Ali, duas filhas chegaram. E houve ainda a parada na Vila Maria, onde nasceu a última.

A família se completou, o trabalho o deixava feliz, mas jamais esqueceu da terra. Mesmo em São Paulo seguiu plantando e criando: mandioca, milho, abóbora, galinhas e patos. Aos domingos, quando não batia cartão na fábrica nem cuidava da horta e dos animais, saía para vender laranja e mexerica no campinho de futebol do bairro. Cada centavo era colhido pela filha Aparecida e parava direto no bolso de Ananete.

Na Vila era figura conhecida. “Ele costumava caminhar e ficava de papo”, conta Aparecida. “Quando a gente ia na feira era um sufoco. Todo mundo conhecia ele.” Dizia que um homem para ser completo precisa saber ler e escrever, senão é um cego no mundo. Analfabeto, se virava reconhecendo as formas dos nomes dos ônibus e de palavras úteis. Ainda assim, foi promovido a chefe de seção na fábrica. A esposa às vezes reclamava: Fábio trabalhava demais. Ele respondia levando a amada ao circo para assistir à dupla Tonico e Tinoco.

A aposentadoria chegou compulsoriamente aos 55 anos: foi atropelado voltando do serviço. Passou oito dias em coma. mas pouco depois já estava carpindo seu jardim e reformando a casa — trabalhar era sua forma de se comunicar com o mundo. Que o digam as visitas, todas saíam de sua casa com rosas, margaridas e copos de leite plantados por ele.

Foram as plantas, aliás, que o ajudaram a suportar a morte da esposa. Para esquecer, Fábio labutava. Só um infarto fulminante foi capaz pará-lo. Partiu dia quatro de junho. Deixou cinco filhos, 11 netos, 12 bisnetos e uma tataraneta. Na memória deles, ficou a figura do velhinho de poucas palavras, mas cheio de amor. Chapéu de feltro, 1,50m de altura e um coração de gigante.

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Rafael Frizzo

Rafael teve em vida uma companhia bastante especial, reflexo de si. Reinaldo, gêmeo idêntico, carregou com ele uma conexão muito além das palavras. Onde um estava, o outro era lembrado, cuidado e protegido. Foi assim desde que eram os miúdos Fael e Bolão, e permaneceu assim até o fim da vida. 

Talvez a poliomielite contraída por Rafael com apenas três meses de idade tenha influenciado de alguma maneira nessa dinâmica. Foram dez anos de buscas por tratamento e receios de que nunca poderia andar sem aparelhos. Os pais Ivani e João Messias tiveram suas preces ouvidas, pois o menino não só dispensou o equipamento com três anos, como aprendeu a dirigir e até a andar de bicicleta.

Houve sequelas nas pernas, parcialmente compensadas por sua potência mental. Foi autodidata, dono de uma inteligência incomum. Apaixonado por automóveis e caminhões, estudou mecânica e montou sua própria oficina, um verdadeiro projeto de vida. Seu jeito profissional e transparente foi suficiente para garantir a clientela nos 35 anos de atividade por lá.

Rafael era muito espiritualizado e levava também a sério o preceito bíblico da não ostentação a virtude, especialmente na caridade. Depois de sua partida, a família descobriu surpresa muitas das suas ações para ajudar aos outros. Ele nunca havia dito nada. Também não criticava ninguém, para ele todo mundo era honesto. Previsivelmente, era raro achar quem dele falasse mal.

Nunca casou e morava com a família de Regina, única mulher entre os quatro irmãos. Habilidoso com as mãos, montava em dois dias os quebra-cabeças de mil peças que ela comprava. E também carrinhos, desses de fascículos. Com amigos, gostava de rumar para Quatro Cantos, na represa de Nazaré Paulista, para pescar. Passava às vezes três dias com eles por lá.

No dia em que o proprietário do terreno onde ficava sua oficina decidiu vender a propriedade, Rafael sentiu o baque. Triste, somatizou a decepção e até desenvolveu uma infecção bacteriana na coluna cervical. Conseguiu se curar, mas anos depois um par de paradas cardiorrespiratórias o levou. Ele já havia desafiado expectativas e feito tudo o que queria. Partiu realizado.

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Ivanilde Leal Ramos Lima

Ivanilde encontrou-se também como missionária, unindo religiosidade à vontade de ver o mundo. Certa feita, decidida a visitar a tribo Ticunas, que ajudava financeiramente à distância, partiu aos 68 anos para a fronteira com a Colômbia. O périplo a deixou quase um mês incomunicável — voltou doente, desidratada, cheia de picadas e absolutamente realizada.

Nunca teve medo de ir atrás dos seus sonhos e ajudar os outros, mesmo quando foi incompreendida ou precisou arriscar-se. Foi uma mulher à frente do seu tempo, dessa e de outras maneiras, a começar pelo papel de mantenedora da família, assumido do cair dos primeiros salários até o fim.

Não que o início tenha sido particularmente fácil. Na esteira da infância humilde e após trocar Adamantina por São Paulo com seus pais aos cinco anos, ganhou quatro irmãos. Já nesse momento passaria a cuidar dos seus, primeiro como a mais velha dos filhos e depois como alguém a quem recorriam em caso de necessidade.

Isso porque de funcionária de uma loja de tecido Ivanilde foi aprovada em um concurso para o Banco do Brasil e depois em um processo seletivo para o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, onde trabalharia por três décadas até se aposentar. Formada em contabilidade e amante dos estudos e da sua independência, era uma mulher incomum para a época.

E talvez tenha sido essa uma das características que fascinou Lael quando se conheceram no culto. Ela cantava no coro e ele, um trompetista de formação, regia a orquestra. O marido, um corretor de imóveis, acostumou-se de pronto a ficar em casa quando ela viajava com as irmãs da igreja — lidava bem com isso e também com o fato de que em muitos meses era ela a ganhar mais dinheiro no lar.

Já a única filha do casal, Maely, precisou conviver com a ideia de dividir sua mãe. “O grande legado dela pra mim foi esse, mostrar que o amor só tem sentido se for voltado pro outro”. A maturidade a ajudou a entender esse impulso de Ivanilde em ajudar, em ser útil, e os inevitáveis sacrifícios inerentes a essa entrega. Se ela não podia contribuir financeiramente, arranjava vaga em hospital, cesta básica, o que estivesse ao alcance.

Tinha no jeito calmo e expansivo uma doçura sua, do riso solto à eloquência característica, sempre em voz baixa. E passava o tempo com pinturas, crochês e mais recentemente com o Photoshop. Encantou-se após um curso e passou a fazer cartões virtuais com fotos de amigos e mensagens bíblicas. Versada nos meandros tecnológicos, chegou a criar um perfil no Facebook só para esse tipo de montagem.

A estrada era outra paixão. Amava viajar e ia mesmo que fosse sozinha. Conheceu Egito, Espanha, França, Inglaterra… Por sua causa e também para agradá-la, a família encarou junta cerca de oito cruzeiros diferentes. Era bom vê-la feliz.

Ivanilde descobriu uma leucemia e tudo se passou rapidamente. Ficaram a gratidão de quem foi tocado pela sua generosidade sem limites. À família, deixou um projeto em andamento: a educação formal de Sara, menina da tribo Ticunas que agora estuda na cidade grande, também ela cheia de garra e de sonhos.

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Pedro Carvalho

Pedro foi trazido à tona pelas mulheres de sua vida. Pai de quatro moças, e de um rapaz, conheceu através delas e da esposa o significado e o peso da palavra amor. Mais que isso, foi se abrindo, ainda que aos poucos e meio desconfiado, para esse sentimento e para toda a gama de experiências de alegria e dor relacionadas a ele.

Sujeito às antigas, sempre buscou refúgio na sisudez masculina e com essa máscara de seriedade navegou pela vida. Nasceu em uma família numerosa, mas rapidamente encontrou seu caminho e nele seguiu sem olhar para trás.

O pessoal do bairro Jardim Lenize conhecia aquele homem alto, meio bravo, mas responsável e honesto, como Pedrão Pintor. Em casa cumpria à risca o papel de paizão e de provedor: a esposa nunca precisou trabalhar e nunca ficou sozinha. Apreciador de uma visitinha ao botequim, se fosse preciso estava de pé no dia seguinte às 3h da manhã para pintar paredes.

O carinho e o impulso de cuidar foram ficando mais evidentes também ao longo da convivência familiar. “Fui a filha que deu mais trabalho porque fiquei grávida ainda adolescente. Ele ficou muito nervoso com tudo, mas abraçou a causa e cuidou do meu primeiro filho, que hoje tem 21 anos, como se fosse dele”, conta Patrícia. “Isso foi muito importante na minha vida.”

Se a compreensão foi um dom adquirido na caminhada, o mesmo não pode se dizer da paciência. Não era conhecido por repetir mais de duas vezes o que quer que fosse, encrespava na terceira. Nem a paixão pelo São Paulo escapava porque bastava começar a perder para desligar a televisão.

Era assim, difícil de lidar, também com a esposa, Clarice. Na época Pedro ainda não tinha dimensão consciente do tamanho do amor que carregava por ela. Foi descobrir depois de 50 anos de casado, quando num dia insuspeito decidiu não almoçar em casa para terminar o serviço, e ao chegar no fim da tarde não a encontrou mais com vida.

O choque com o infarto fulminante que a acometeu, ainda nas primeiras horas da manhã, levou também uma parte de si. Nada tinha mais graça, e o carinho dela com a casa e com ele estava além das possibilidades das filhas. Mesmo o mocotó, a dobradinha e o sarapatel preparado por elas não tinham mais o mesmo sabor.

E assim, com o peito carregado de solidão, aquele homem que não havia pisado em um consultório médico em décadas contraiu um câncer. Se sofreu foi calado e uma semana após a última feijoada com as filhas partiu aos 74 anos, mesma idade da esposa. Para os cinco filhos e dez netos, porém, deixou muito: a memória de um sujeito trabalhador e guerreiro, que lutou até o fim e conheceu todas as faces do amor. 

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Camila Gomes Palmeira Senkiio

2020 tem sido um ano difícil. Muitas coisas tem acontecido e ainda irão acontecer até esse ano acabar. Hoje, eu e minha família perdemos a minha avó.

Ela já não estava bem há algum tempo, e não dá pra dizer que isso é um choque: a gente já esperava que isso ia acontecer a qualquer momento. Mas, ainda assim, é possível se preparar pra isso? Mesmo quando a gente consegue ver vindo a um quilômetro de distância, mesmo sabendo que vamos sofrer um impacto, que a dor é iminente, é possível estar preparado?

Nunca.

Ainda assim, sofremos.

Mas para certas coisas na vida a única saída é enfrentar de frente.

Isso é uma dessas coisas.

Minha avó foi uma mulher complexa. Mãe de dois, foi ausente na criação deles, auto-centrada talvez, uma maneira de existir que causou dor a pessoas ao redor dela. Mas no que ela falhou quando era jovem, ela certamente se esforçou para compensar mais tarde na vida: para nós, os três netos que viveram próximos dela, foi muito boa, e foi muito presente. Teve ainda outros oito, mas viviam distantes, em Belém.

Se eu estou onde eu estou hoje, é graças aos meus pais, que acreditaram em mim e nos meus sonhos, e sacrificaram muito para que e eu e meus irmãos tivéssemos o necessário pra chegar onde chegamos — mas também graças aos meus avós, que fizeram tudo o que puderam para suavizar as durezas da vida. 

Se hoje eu posso entrar num shopping aqui na Califórnia e tocar uma sonata de Beethoven, é por que minha avó acreditou em mim quando eu era ainda criança, e me deu meu primeiro piano pra que eu pudesse estudar música — algo completamente supérfluo num país onde a vida era e é difícil pra tanta gente, minha família incluída.

Ela pode ter sido uma mulher dura para algumas pessoas, dona de um jeito autoritário e inflexível em relação ao próprio querer. Mas foi muito amorosa comigo. Muitas vezes eu conseguia percebê-la segurando as lágrimas quando falava comigo ao telefone por causa da dor da distância. Eu cansei de prometer para ela que no ano seguinte conseguiria visitá-la. Cansei de fazer promessas vazias e não conseguir cumprir. Mas ela sempre respondia “Bom, você está se dando bem aí e está feliz. É isso que importa”.

Também ela buscou felicidade na vida. Aos 20 gostava das boates da década de 50, de pular Carnaval. E depois de viajar. Conheceu bem o Brasil, de Fernando de Noronha a Foz do Iguaçu, do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte, só não foi para o exterior. E, mais recentemente, amava estar na praia.

Eu sinto muito, minha avó. Eu sinto muito que eu não consegui vir tocar piano pra você mais uma vez. Você merecia isso e muito mais. Eu vou sempre me lembrar e ser grato por tudo que você fez por mim, e vou sempre me lembrar que, na vida, nós construímos nossos sonhos em um alicerce fundamentado por pessoas que vieram antes de nós, cuidaram de nós, e acreditaram em nós. Minha avó é parte da minha história, e parte das pequenas, mas ainda assim importantes, conquistas da minha vida. Da fazenda no interior de São Paulo, pra capital da cidade, pra Califórnia, nós fomos longe, juntos.

Obrigado pelo o que fez por mim. Eu jamais vou esquecer. Descanse em paz.

* Homenagem baseada nas palavras do neto Murilo Ferreira

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Ilzidinha César Brilhante de Oliveira

Ilzidinha nasceu brincalhona, amorosa e decidida a viver intensamente até o fim. Filha de Rubens e de Maria das Dores, cresceu ao lado do caçula Rogério como uma irmã alegre e expansiva, dedicada à família e aos amigos.

A vontade de estudar esbarrou na difícil realidade financeira após a separação dos pais. Jovem, viu os livros darem lugar ao trabalho de ajudante de produção na Trifil para auxiliar a mãe. Nunca mais voltaria à escola, mas lá já havia conhecido seu grande amor.

Três anos após o início do romance com Ricardo passaram a dividir um lar. Com o tempo chegaram os filhos Robson e Istefany, a Teté. Renato, o mais novo, veio dar um sopro de vida pouco após o baque do falecimento do pai de Dinha. “Deus foi tão bom comigo que logo em seguida me mandou um filho”, dizia agradecida.

A oficialização da união no cartório só aconteceu em 2002, depois de nove anos juntos. O casamento na Igreja, grande sonho, demorou mais um pouquinho, e foi celebrado em 2008. Em 2012 outro desejo virou realidade: tornou-se avó com o nascimento da única neta, Laura, a quem chamava de Boo.

Era das mães que dão liberdade para os filhos, mas não se omitem na hora da bronca. Já o sorriso era fácil. Até a chegada em casa às 22h, depois de uma jornada como ajudante geral, recepcionista ou camareira, era de bom-humor, cantando.

Tinha um raro dom para agregar pessoas e foi o apoio da família durante a partida do sogro, Nivaldo, de quem também era muito próxima. Seu jeito radiante botou a todos pra cima, e apesar do próprio sofrimento não perdeu o sorriso.

Mas seu maior prazer era mesmo ficar ao lado de Ricardo, a quem chamava de “meu nego”. “Às vezes ela ligava à noite e pela música no fundo parecia que havia uma festa na casa, mesmo estando só ela e o marido”, conta a cunhada Valéria. Pudera, Dinha queria viver intensamente como se cada dia fosse o último. Até que o último dia chegou, mais cedo que o esperado, aos 49 anos.

Passou ele inteiro com a família, cuidou da sogra, foi de surpresa no aniversário da sobrinha-neta, divertiu a si e aos seus e no dia seguinte não acordou mais, vítima de um infarto. Partiu como queria, perto do marido e dos filhos e com direito a despedida e pedidos finais, ainda que inconscientes: havia manifestado no mesmo dia de maneira até então insuspeita o desejo de ser cremada, e assim o foi.

A foto que ilustra esta homenagem é uma das centenas de selfies que mandou para Ricardo, sempre pela manhã, quando ele já havia saído para o trabalho, dizendo que o amava e que ele era o homem de sua vida. “A melhor pessoa que conheci me lapidou e fez de mim um homem”, declara ele. Foram felizes e sabiam.

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Odette da Costa Mattos

A poucos privilegiados é dada a chance de uma existência plenamente realizada após um início duro. Odette logrou essa reviravolta na própria vida e conquistas muito além do que um dia, ainda menina, se permitira sonhar. Filha de pais de origem portuguesa, passou a infância vendo o pai, Plácido, dando duro em chácaras e padarias de Guarulhos, enquanto a mãe, Adélia, cuidava da casa. Nunca esqueceu as carências materiais daqueles tempos.

Talvez justamente por conta delas, teve apenas um irmão e uma irmã mais novos. Para ajudar na situação financeira do lar, empregou-se aos 14 em uma tecelagem. O serviço na fábrica durou pouco, até conhecer o marceneiro, Braulino, e com ele casar e repetir os passos da mãe com apenas 16 anos. Ficaria no lar, criando os rebentos vindouros, a dificuldade financeira persistente.

Costurava para fora, uma forma de tentar equilibrar as contas, e chegou a trabalhar como diarista. Ocasionalmente recebia alguma ajuda dos pais. Com sacrifício compraram um terreno no ainda pouco habitado centro de Guarulhos e lá ergueram uma casinha simples, quarto e cozinha. Faltava até sapato para os pés, mas ela segurou as rédeas da família.

Nessa época já dedicava-se ao que seria sua maior paixão: o lento e por vezes minucioso trato com as plantas. Seu quintal foi tomado por elas, de arbustos a árvores, uma explosão de vida a lhe fazer companhia. Seria assim até o fim, com jardins cada vez maiores. Aprendeu botânica sozinha, conversando com vizinhos, perguntando nas floriculturas e mais recentemente pesquisando na internet.

Os filhos já crescidos compraram máquinas de costura e Odette montou uma oficina. Até chamou gente para ajudar e com isso foi mudando de vida. Independente, alugou os quartos vazios da casa com a saída dos rebentos. Fazia ela mesma os bicos de pedreiro, encanador, eletricista e pintor, uma miríade de talentos que impressionava os filhos. Com a situação melhorando, permitiu-se luxos como viagens para Angra dos Reis e até para a Itália, de onde, acredite, deu seu jeito para trazer mudas de plantas.

A personalidade geniosa e obstinada demandava tudo do seu jeito e não se furtava a discussões, fosse com quem fosse. E a maneira enérgica e exigente privou os filhos de um trato mais carinhoso, apesar da infindável disposição para ajudar. Já os netos e bisnetos conheceram uma Odette mais afetuosa.

Era muito seu também o interesse pelas modernidades. Além das plantas e da costura, amava os filmes românticos, as comédias e as películas natalinas da TV por assinatura, que revezava com jogos online no notebook, como Tetris. Os exames eram mantidos sob controle na base da ginástica e das caminhadas matinais diárias com as amigas do bairro. Incentivava os filhos a fazer o mesmo e a comer saudável, para, como ela, querer viver e viver bem.

Dois meses antes de completar 81 fez uma cirurgia de catarata: queria enxergar para seguir andando e jogando. Semanas depois, indo sozinha como de costume para a consulta com o oftalmologista, decidiu descer antes do ponto do ônibus para caminhar um pouco. A queda, diagnosticada a princípio como um deslocamento leve de bacia revelou-se uma fratura tarde demais. O edema foi a causa da embolia pulmonar que a levou.

Odette queria muito da vida. Inclusive ver florescer o Ipê comprado especialmente para sua calçada após uma consulta à prefeitura, em frente da casa repleta de plantas. Não houve tempo. A árvore está bem cheia, seus os quatro filhos, oito netos e oito bisnetos verão as belas flores beijando o sol ainda este ano.

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Janete Gonçalves dos Santos

Darvin esperava aflito no hospital por alguma notícia da esposa quando enfim o médico surgiu apressado de uma das portas. Janete havia sido internada por conta de uma hemorragia severa, diferente das outras que lhe acometiam ocasionalmente. “Ou retiramos o útero ou ela vai morrer”, afirmou o doutor estabelecendo o curso de ação.

Meses depois era Janete a aconselhar outras amigas com endometriose e dor a fazer a cirurgia e “ficar bem como ela”. Assim funcionava sua mente positiva e pragmática. No cálculo final, a infertilidade era um preço razoável a se pagar pelo fim do sofrimento e prostração. Por diversas vezes onde outros teriam se entregado vendo o corpo fraquejar, riu solto e cobriu o entorno de amor, de cuidado, e de festa.

A rotina com o marido Darvin era de cumplicidade e parceria, e planos de adoção chegaram a ser traçados, mas perderam-se em meio ao mar de sobrinhos que invadiu sua vida. Passavam de 40, a maior parte deles do lado do marido da família. Para essas crianças, e também para a meninada da rua, foi mãezona, divertida e cuidadora.

Dona de uma receita de bolo de cenoura lendária, conhecida e adorada pelos pequenos do entorno, nutria amor pela cozinha, pelas festas e reuniões de família. Nessas ocasiões, o jeito palhaço, piadista e brincalhão surgia com força total, assim como o papo fácil e a disposição quase infinita para ajudar quem precisasse.

Era sua maneira de superar, e mesmo rir, dos limites impostos pela saúde frágil. Janete tinha hipertensão e diabetes, dores frequentes de ouvido e cabeça. Depois de passar pela Souza Cruz, Tostine e KLB Group viu a carreira de auxiliar de produção encurtada com um AVC aos 52 anos.

Seguiu ativa, porém, enquanto o corpo permitiu. Ia para a missa aos domingos, e Aparecida do Norte recebia sua visita todos os anos, devota que era. Viajava quando podia: amava a praia, o campo, andar de cavalo, de bondinho.

Após o avanço da artrose e da osteoporose fraturou o fêmur e as semanas acamada se alongaram, tornaram-se anos. Não voltaria mais a andar depois disso. O câncer surgiu na garganta, mas espalhou-se mais rápido e não deu espaço e tempo para dor.

Mesmo nesses últimos momentos a mente ativa e otimista ainda sonhava em rever e cuidar da mãe, octogenária e obliviada pelo Alzheimer, em Santa Catarina. Na impossibilidade do reencontro, foi esperar por ela onde a doença e a dor não mais a alcançariam. 

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