Memórias de Vida

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Jorge Alfonso Saavedra Walker

Jorge dividia com as cinco filhas um hábito de alto risco: abria aos domingos uma página aleatória de um grosso livro de receitas do mundo todo e preparava o prato que surgisse. Mas não só, falava do povo e da origem da iguaria, uma aula de antropologia e de geografia para as pequenas. O resultado era misto e reclamar era proibido, “pensa que na Índia todo mundo adora essa comida. Se eles comem, vocês também têm que comer”, ouviam elas. 

Sem ter como comprovar a veracidade da afirmação ou mesmo a fidelidade da receita, restavam às meninas planos de grampear certas páginas para evitar o risco de repetição. Mais garantido era quando ficava nos pratos do seu país, o Chile. Empanadas chilenas, o variado cachorro-quente de lá e as paellas eram sucesso garantido. Assim manteve a conexão com a terra natal, de onde saiu em meados dos anos 70 em meio à ditadura de Pinochet.

À época já era casado com Tereza, brasileira e melhor amiga de sua irmã, Carmen, com quem dividia um quarto em um pensionato de freiras do Rio de Janeiro. Jorge e sua futura esposa se conheceram através de Carmen no Rio, e dois anos de namoro por cartas precederam outros cinco casados no Chile, antes da mudança. Preparado, Jorge estudara engenharia industrial, administração de empresas e matemática, e recebera  uma proposta para trabalhar como engenheiro industrial madeireiro em São Paulo. Tereza abandonaria sua profissão de contadora e cuidaria da casa, de Marília, primogênita chilena, e de Mônica, Cláudia, Daniela e Simone, todas nascidas no novo país.

Para elas foi um pai participativo, calmo e carinhoso. Por vezes difícil de entender pelo forte sotaque da mistura de inglês, alemão, francês, português e do espanhol nativo. Usava o divertido e confuso dialeto oriundo das línguas que dominava para ensiná-las a assumirem responsabilidade pelos próprios atos. Em vez de proibições, acordos. Em vez de bens materiais, conhecimento para trilharem o próprio caminho.

Distraía-se com mergulho certa época, junto com os também amados deveres de membro do Rotary Club. Amava viajar com a esposa, babás e filhas, fossem as longas travessias de carro até o Chile, para passar as festas de fim de ano com a família chilena, ou até a fazenda da sogra, Albina, no interior de Minas Gerais, nas férias de julho. No restante do ano, rumavam para a casa de praia em Caraguatatuba.

Tereza faleceu em 2005. Passados cinco anos, Jorge casou-se novamente, com Maria de Lourdes. A nova companheira já tinha netos, e ele também já contava dois: Enzo e Lucas. Depois veio Luan, seu “pequeno piolho”, a quem curtiu juntamente com seus outros netos enteados. 

A saúde começou a sofrer após uma sequência de AVCs. Foram nove no total, e a cada novo incidente ficava mais debilitado. Partiu enfim, deixando na memória de todos seu jeito divertido, de quem perdia o amigo mas não a piada, o companheiro rotário inesquecível, o excelente profissional, o melhor pai e marido que pôde ser.

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Francisco Grosso

Um acidente grave de carro às vésperas da última etapa de testes para o Juventus inviabilizou o sonho de Francisco de tornar-se um jogador de futebol profissional. Atuara como ponta-direita por anos em um time de São Vicente, no litoral de São Paulo, a bola era sua paixão. Mas enquanto recuperava-se da batida e lutava para impedir o amputamento de seu braço, não poderia mesmo sonhar que a glória merecida se materializaria fora dos gramados.

Francisco foi pai, avô, compositor e poeta. Foi reconhecido, bem-sucedido, deu e recebeu amor. Caçula de três filhos, deixou na adolescência o bairro de Pinheiros, onde vivia a família, para viver em uma idílica Sāo Vicente. O pai, José, aposentava-se naquele momento da sua barbearia de sucesso, por onde circulavam nomes da política como Ademar de Barros, para descansar na praia.

O sucesso financeiro dele garantiu a Francisco uma vida confortável. Pescava com o pai e cabulava aula, sua única obrigação, para jogar bola. Não sem os protestos de José, incapazes de dissuadir o menino como geralmente ocorre. Um dos companheiros de clube seria colega do Rei Pelé no Santos anos depois.

Aos 20 Francisco já morava em São Paulo novamente. Depois do acidente e de abortada a promissora carreira de jogador de futebol trabalhou por alguns anos no salão montado pelo pai, mas o negócio foi vendido após o falecimento dele. Atuou ainda em uma empresa antes de ser contratado e fazer carreira na Consul como gerente na Assistência Técnica. Aposentou-se lá.

O amor chegou por um caminho bem mais misterioso. Fora entregar uma carta nos Correios e saiu da agência apaixonado por uma mulher que fazia o mesmo. A paraibana Nemézia topou vê-lo novamente após um papo rápido e já apareceu com um presente no segundo encontro. Francisco lembraria para sempre do misto de constrangimento, por não haver levado nada para ela, e de emoção por ver-se correspondido naquele amor.

Tiveram dois filhos, Giovanni e Alcebíades. Os meninos viam em Francisco alguém trabalhador, honesto e capaz de dar bons conselhos. Mas acima de tudo um pai carinhoso e próximo. A esposa, exímia cozinheira, cuidava da casa e fazia comida para fora também. Eventualmente puderam comprar uma casa em Mongaguá, para onde a família rumava nas férias e feriados prolongados para descansar.

Depois de aposentado, mergulhou no seu lado artista. Já escrevia poemas e compunha letras de músicas, e neste momento tornou-se locutor de rádio, primeiro na VIC e depois na Nova Onda FM, em Guarulhos. Recentemente comandou o Sarau Amor e Esperança na Casa de Cultura Popular São Rafael, em parceria com a Prefeitura. Era conhecido no meio cultural da cidade e chegou a publicar dois livros de poesias.

A primeira neta, Giovanna, de quem cuidou com a esposa desde bebê, o acompanhava nesses saraus. Também teve a sorte de ver de perto parte da primeira infância do neto caçula, João Pedro.

Francisco ficou internado uma semana por um problema no esôfago. Quando saiu, uma manga cortada, sua primeira alimentação sólida, o levou de volta para a unidade médica, desta vez em definitivo. Princesa, sua cadelinha e xodó, sente sua falta. E a Casa de Sarau Amor e Esperança, que batizou, agora se chamará “Chiquinho Grosso”, em sua homenagem. Em seus dias de frustração pela carreira perdida como jogador profissional nunca poderia sonhar que brilharia de tantas outras maneiras.

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João Bezerra de Lima Filho

Fosse arrancando o belo choro de seu surdo nas rodas de samba, conduzindo uma excursão profissional para dezenas ou organizando procissões por seu bairro, João Bezerra de Lima Filho gostava de reunir gente e compartilhar as alegrias da vida, suas paixões e sua fé.

De início, era a alegria de jogar futebol. Queria ser profissional. Mas o futuro de craque das várzea de Cangaíba, na zona leste de São Paulo, onde viveu toda a vida, logo ficou para trás — já na adolescência, por pressão do pai, começou a trabalhar. Ainda assim, a vontade de estar entre amigos fazendo o que gostava era maior que tudo. Não demorou até começar a organizar excursões de ônibus para Campos de Jordão, Poços de Caldas, Santos… João cuidava de tudo, desde o aluguel do ônibus até as festas.

O mesmo se deu com o samba. Era amor demais pela música, precisava dividir com os outros. Ainda jovem, fundou uma ala na escola de samba Nenê da Vila Matilde e desfilou por anos na Vai-Vai. Chegou ainda a sair por outras escolas como Unidos do Peruche — e, uma vez, inesquecível, com o sobrinho André na Imperial. Já nas rodas com a rapaziada ou era surdo de terceira que roncava ou era sua voz que sobressaía, cantando sambas antigos, os clássicos paulistanos que conhecia tão bem.

Também na fé inabalável que tinha em Nossa Senhora Aparecida brilhava a natureza gregária e generosa de João. Todo dia 12 de outubro fantasiava os filhos dos vizinhos de anjo e liderava uma procissão pelo bairro. Ao fim da caminhada dava presentes aos pequenos e servia almoço para todos.

Mas mesmo gostando de estar sempre entre os seus, era só com Claudete que abria o coração. O amor da sua vida chegou ainda na época da Deleu, onde era encarregado de produção. E nunca foi embora, quase três décadas depois — claro, sempre como “namorada”: cada um na sua casa. A decisão de não ter filhos, porém, nada teve a ver com não gostar de crianças. Cuidava dos filhos de alguns dos cinco irmãos enquanto os pais trabalhavam. Nessas horas virava criança também, brincando de bolinha de gude.

Mas não era só o tempo e a alegria que dividia: “ele era um cara muito culto, cheio de informações, antenado em tudo. A vida lhe deu muita experiência e ele passava essas coisas pra gente”, conta o sobrinho Nilton. A perda gradual da visão foi trazendo gradualmente João mais pra dentro. As excursões viraram boas memórias e, já aposentado por invalidez, passou a curtir os Carnavais em casa com a família.

A fé na Santa não foi abalada pela doença, mas passou a ser nutrida pelos programas de rádio, seu grande companheiro, e pelas canções de Padre Zezinho, que uniu seu amor à música com a devoção a Deus.

João foi cedo, aos 54 anos, vítima de uma infecção generalizada originada por uma diverticulite. Deixou sua companheira, cinco sobrinhos e a lembrança do sujeito que amava dividir a felicidade transbordante no peito. 

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Maria do Carmo Nascimento

Em um dedo, o oxímetro media 46, muito abaixo do normal. No outro, a aliança de uma união conturbada, mas duradoura: 42 anos de casados. Naquela internação imediata precisou despir-se de todos os acessórios supérfluos: tirou os grampos do cabelo e passou o anel dourado ao dedo da filha caçula — está ali desde então. Foram as últimas interações de Sara com a mãe, Maria do Carmo, uma entre as milhares de vítimas da Covid-19 no Brasil.

Ao longo dos quase 80 anos em vida, foi mãe para muitos mais além de Sara. “Tenho filho coxo, filho cego, filho branco…”, costumava dizer com orgulho. O instinto maternal mostrou-se desde quando pequena. Primogênita entre 10, a infância de Maria foi marcada pelos cuidados aos irmãos. Eles a tinham como uma figura maternal, chamavam-na pelo apelido de “Inha”, uma redução do “Mariinha” pelo qual os pais a tratavam.

Ainda muito nova, teve de dividir o tempo de cuidados aos irmãos com o trabalho em uma tecelagem. Ali, encontrou o único e grande amor de sua vida, Osvaldo. Não foi um romance fácil, o início do namoro ficou marcado pelo racismo da sogra. “Ela dizia que minha mãe, negra, seria escrava do meu pai, branco”, conta Sara. Mas a paixão foi capaz de superar a discriminação e, aos 18 anos de Maria, casaram-se.

Pouco depois, por volta dos 20, teve de passar por uma prova de fé. Em uma época na qual a tuberculose ainda matava muitos no Brasil, Maria viu a mãe acometida pela doença. A jovem fez uma promessa: “Se o Deus dos crentes a salvar, me tornarei crente também”. Com a recuperação, tornou-se uma evangélica fervorosa, chegava a abrir sua casa para encontros da Igreja. “Uma das lições que ela me ensinou foi servir a Deus”, afirma Sara.

Essa foi apenas uma das provações de sua vida. Ainda em Recife, envolvido com amantes, o marido dela colocou tudo a perder. Mas nada abalava a fé de Maria do Carmo — ela acreditava na vinda de momentos melhores. Aos 30 anos, junto com alguns dos sete filhos, mudou-se para São Paulo. Primeiramente, viviam em uma comunidade, mas após muita batalha como auxiliar doméstica conseguiram comprar uma casa em um bairro melhor da cidade.

Na capital, Maria perdeu o marido e dois filhos, e a cada partida aumentava mais a sua devoção ao Senhor. Viajava para pregar e estava sempre a postos para servir. Além disso, os muitos filhos “adotivos” faziam de tudo para mantê-la ativa.

Despedir-se da mulher que sempre dava “a última palavra”, como bem lembra a caçula, não foi fácil para seus sete filhos de sangue, 12 netos, sete bisnetos e múltiplos filhos do coração. Infelizmente, não conseguiu realizar um de seus grandes sonhos, ver Sara formada em Pedagogia. A formatura só aconteceu dois meses após Maria perder a batalha contra o vírus. Entretanto, a jovem sente: independente de onde estiver, a mãe continua a olhar e a orar pelos seus. 

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Francirene de Lima Apóstolo

Na prendada família de Francirene coube a ela desde cedo um dos dons mais belos que há: o de preparar com as próprias mãos o alimento que sustenta, alegra e une.

O elo físico a juntar tanta gente já ligada pelo sangue passava pelo seu conhecimento dos segredos da comida e do fogo, mas também das preferências e dos pratos capazes de colocar um sorriso no rosto de cada pessoa que amou.

Terceira mais velha entre dez filhos, veio de Fortaleza para São Paulo ainda criança com os pais. A personalidade carismática e atenta ao dinheiro a mantinha em movimento, vendendo os trabalhos manuais das irmãs e inventando excursões com os vizinhos.

Muitos casais devem suas uniões a esses passeios, e Francirene tornou-se madrinha de casamento, e encarregada pelo buffet, em várias cerimônias. Feijão tropeiro, feijoada e farofa; dobradinha, sarapatel e rabada; lasanha e bacalhoada; gelado de abacaxi e bolo de cenoura… Sua culinária era das que abraçam.

Entre a família o “macarrão madinha”, sua macarronada ao alho e óleo, era idolatrada entre os muitos sobrinhos, e até entre os que não eram seus afilhados. Francirene conheceu a felicidade à beira do fogão, dedicando a ele todos os dias como se fosse domingo.

Seus seis irmãos mais moços tinham nela quase uma segunda mãe e isso só ficou mais forte depois que casou. José Apóstolo era vizinho e ouviu do futuro sogro que se quisesse namorar a filha de 23 anos tinha que arrumar a vida e voltar dali a um ano. E assim foi: o noivo só passou do portão da casa para o casório, que aconteceu no quintal.

Francirene acabou trabalhando não com comida, mas com dinheiro. Foi tesoureira da Santa Casa por anos e só deixou o serviço de lado ao dar à luz à única filha, Luciene. Sua última proeza financeira foi comprar um carro zero usando apenas o salário mínimo do INSS.

Diabético, o casal viu a saúde se complicar e manteve-se unido, um cuidando do outro. Mesmo quando chegaram as cadeiras de rodas enquanto a visão aos poucos ia embora. Abandonado o fogão, Francirene seguiu preparando apenas o bolo de cenoura da família: “a gente colocava as coisas na mesa pertinho e ela fazia”, lembra Françui, a irmã mais nova.

Conforme a doença avançou, sua risada tão característica deu lugar ao silêncio. O nascimento da única neta, Gabriela, criada como mais uma das tantas filhas e filhos que não teve, lhe deu um novo alento — já quase cega acordou, respirou e viveu pela pequena, até o corpo dizer não mais. Francirene partiu deixando para trás seu grande amor, saudade e uma família inteira órfã.

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Anatelson Josino da Silva

Quando tinha 17 anos, Natércio mudou de nome e de idade. Trabalhando como faz-tudo para uma família rica de João Pessoa — cuidando do jardim, do cachorro, e sendo chofer — fora detido com a patroa por dirigir sem a carteira de motorista, de todo modo indisponível para si.

Na verdade não tinha documento algum e estava a milhares de quilômetros dos pais e dos oito irmãos desde que deixaram a vida dura no semiárido em Patu, Rio Grande do Norte, para viver no interior de São Paulo. Na época o menino ficara para trás. Pequeno e inteligente, foi chamado pelos donos da terra onde viviam para trabalhar em casa, na capital da Paraíba.

Mas na correria do registro tardio dos filhos em Gardênia, São Paulo, seus pais esbarraram em um funcionário com dificuldades auditivas. Natércio acabou virando Anatelson, seu irmão Adélcio virou Adelson, Nilton passou a se chamar Milton e assim por diante. Um aninho a mais na carteira de identidade e o garoto já podia voltar a dirigir.

Faria isso por toda a vida, mas não ali. Demitido após uma uma resposta atravessada para sua empregadora, precisou ainda esperar oito dias naquela casa pelo ônibus ao sul, para reencontrar sua família. Sentia falta deles. Já reunidos, migraram em definitivo para a metrópole paulistana. O jovem ajudava o pai nos trabalhos de guarda noturno, mas logo pegou um bico em uma oficina.

Lá conheceu um dono de caminhão-cegonha e passou a dirigir para ele. Depois tornou-se sócio e por fim, após juntar dinheiro, assumiu o negócio por completo. Ficou famoso na estrada ajudando quem precisava com alguma peça extra, ou mesmo consertando o motor necessitado ali na hora. Conhecido como “prefeito de Caicó”, ou mesmo “prefeitinho”, não possuía a palavra não no seu vocabulário.

Mesmo com a rotina intensa de viagens conseguiu ser um bom marido para Maria Zélia e pai presente para os três filhos: Fábio, Natércio e Ana Flávia. Ajudou nos cuidados a eles enquanto a mulher trabalhava fora, primeiro em uma confecção e depois vendendo roupa em uma feira. Era fácil prever o tipo de avô que se tornaria: completamente apaixonado pelos cinco netos de sangue e pela netinha do coração.

Seu jeito brincalhão era conhecido. Amigo de todo mundo, tinha resposta na ponta da língua e uma saída pronta para qualquer situação. E quando dizia, galhofeiro, que era primo de Lula ou da Dilma, havia quem acreditasse. Só não conseguiu contornar a passagem do tempo e o sabia. Nas viagens de caminhão com a esposa mostrava os senhores sentados na calçada e dizia “hoje são eles, amanhã sou eu que vou precisar parar de trabalhar”.

Não se conformava, mas foi assim. Um dos filhos assumiu eventualmente o caminhão, enquanto Anatelson ainda ajudava a esposa na feira, já aposentado. Quando nem isso pôde mais fazer, encontrou o álcool. Na época adotou — ou fora adotado? — pela cadelinha Iracema. Ela ia com ele para todos os lugares e o trazia até o portão, até um dia entrar e nunca mais sair.

Sobreviveu a três embolias pulmonares antes de partir após uma parada cardíaca e 32 dias de coma. Amou a vida e quis tirar dela a última gota, colhendo frutas na liberdade da estrada. Mas a sua hora de descansar, e de habitar as melhores memórias de quem amou, havia chegado.

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Clara Thomaz Pregnolato

Clara aprendeu cedo a apreciar os pequenos prazeres com os quais sua longa vida lhe presenteou. Da infância na minúscula e rural Araraquara da década de 30, cercada por nada menos que 10 irmãos e irmãs, à velhice plácida no sítio da filha e do genro em Ibiúna, passando pelo deleite visceral de um bolinho de chuva no ponto exato. Ela reconheceu em tempo a delícia de estar viva.

A vida no interior seguiu seu fluxo natural: o serviço na tecelagem, o casamento com Angelino, a chegada de dois filhos. Foi depois do nascimento das crianças, e também por amor a elas, que o casal decidiu ir para São Paulo atrás de um futuro mais promissor para todos.

Na cidade grande vieram mais dois pequenos e outro emprego em empresa de tecelagem. O respiro da vida corrida do trabalho e da criação dos filhos vinha na indispensável missa de domingo. Dona de uma personalidade forte, não se furtava de dizer o que fosse na frente de quem julgava precisar ouvir. Esconder sentimentos e engolir palavras não era com ela.

Clara ficou viúva aos 56 e mudou-se para uma vila no bairro Belém. Depois de viver no interior e em alguns bairros da zona leste, finalmente encontrara o seu tempo e lugar: a porta de casa aberta, visitas dos bisnetos, estar cercada de gente conhecida… a vida em termos mais seus. Ficar sentada em frente à sua casinha, acompanhada pela inseparável cadelinha Gina, e observando as crianças brincando era outro pequeno prazer saboreado sem pressa.

A paixão por cachorros tornava ainda mais atraente o sítio para onde a filha Ieda e o genro Carlos a levavam quase todos os finais de semana. Se não fosse para ficar curtindo o silêncio à beira da piscina e olhando os bichos correndo o passeio era descer a serra e visitar o apartamento de praia da família, no litoral norte. O bordado ia junto e ela seguiu amando a atividade mesmo no fim da vida, quando os olhos já não tinham a mesma clareza.

Sempre sonhou em andar de avião e realizou o desejo por ocasião de uma inesquecível viagem ao Rio de Janeiro com a família, organizada pelo neto Bruno. Mas nada em sua vida pôde comparar-se à emoção e à alegria de ver a neta Fabíola, de quem tantas vezes cuidou como mãe, se casando.

Clara foi a última dos 11 irmãos a partir, vítima de uma parada cardiorrespiratória poucos meses depois do falecimento de um dos mais velhos. Deixou quatro filhos, sete netos e dois bisnetos e lições importantes sobre estar presente e reconhecer o valor dos pequenos presentes da vida.

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Adhemar Gomes da Silva

O sorriso nos rostos das pessoas e o olhar maravilhado não mentia: Adhemar realmente não precisava de nada além de um pandeiro para roubar a cena em qualquer festa ou reunião. Dono de uma técnica apurada e de uma paixão transbordante pelo instrumento, sabia encantar quem fosse. Era esse o lado artístico de um homem determinado a viver até a última gota, pleno de amor pela vida.

Muito antes de completar seus 91 anos já conquistara a família dos sonhos, unida e em harmonia. Mas o caminho até seus três filhos, sete netos e cinco bisnetas começou com uma singela carta a uma desconhecida. Aconselhado pelo pai, e como era costume à época, enviou seu pedido de casamento por escrito para Terezinha, prima do interior de Alagoas a quem nunca vira. Respeitando também a tradição de casos como esses, a moça aceitou.

Lembraria para sempre e repetiria com frequência e bom-humor a história de como gastou suas últimas economias para buscar a futura esposa e trazê-la para São Paulo.  Alagoano como ela, abandonara o Nordeste pouco antes para tentar a vida mais ao Sul. Seu pai, Euclides, vinha de uma família de classe média, mas perdera tudo em uma série de infortúnios. Era preciso recomeçar.

Não foi exatamente fácil, mas Adhemar e Terezinha agora tinham um ao outro, e pacientemente foram construindo uma família sólida como o relacionamento de seis décadas dos dois. Ele era determinado e nesse meio tempo tornou-se funcionário público e garantiu a estabilidade do lar. Três filhos não sobreviveram, ainda bebês, mas os meninos que ficaram — Ailton, Ademilton e Adilson — foram sua alegria.

O dicionário de Adhemar não continha a palavra sobreviver. Para ele, a nossa caminhada só vale a pena se for intensa como ela merece, mesmo se for preciso lutar por isso. E não teve medo de batalhar pelo certo. Dono de uma inteligência impressionante, permaneceu lúcido até os últimos momentos, testemunha da sua extensa família, a quem legou o significado da palavra amor.

Recuperava-se bem internado após dois procedimentos médicos quando teve um infarto fulminante na data exata do seu aniversário de 91 anos. Foram 11 dias de coma antes da partida. Mas quando o momento enfim chegou, suas muitas lições já haviam há muito sido aprendidas.

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Verdirema Miranda de Jesus

Nas páginas da Bíblia consta que a mulher sábia edifica o lar, mas Verdirema foi muito além. A trajetória de cuidado começou aos 12 na roça para alimentar os quatro irmãos mais novos e a mãe doente após a morte do pai. E terminou como matriarca, com nove filhos, 33 netos, 32 bisnetos e até um tataraneto. Todos criados a partir do esforço incansável de construção de um legado de carinho e de amor.

Era uma mulher da terra, acostumada com a rotina de bóia-fria mantida até os 49 anos em Belmonte, no sul da Bahia. Nasceu no mesmo vilarejo onde foi apresentada ao também lavrador Alcides, com quem casou sem conhecer direito e com quem permaneceria unida por quase 50 anos. Os filhos vieram todos lá. Nesses tempos difíceis, em meio às colheitas de café e de cacau típicas da região, dormiam no mesmo cômodo, sobre camas de capim.

Quando faltava comida para tantas bocas, era com a barriga doendo de fome que fechava os olhos para começar tudo de novo antes de o sol raiar. E ainda assim, longe da escola e também de esgoto e de água tratada, alegrava-se ao vê-los crescendo com higiene, saúde e dignidade. Também nunca pisara numa sala de aula, mas ainda assim, por força de um intelecto curioso, sabia ler, escrever e fazer contas.

Sabia também transformar a penúria em sorriso e a escassez em abundância. A casa, pequena, sempre esteve aberta e cheia de amigos e conhecidos. Era solícita e grata na mesma medida, sua alegria de viver a impedia de reclamar.

Aos 49 vendeu sua parte das terras e veio para São Paulo atrás de trabalho e de condições melhores para a família, no rastro dos dois filhos mais velhos. Trouxe os mais novos consigo, além de Alcides, já doente. Suas crianças puderam enfim estudar enquanto desdobrava-se como diarista, trabalhava em asilos, lavava uniformes de times de futebol de várzea, limpava escritórios à noite e mais o que aparecesse e a ajudasse a criar a todos.

Com a família crescendo ao redor de si usava o pouco tempo entre o banho da noite e a cama, depois de cuidar das crianças, para tricotar roupas para os netos e bisnetos. Não concebia vida sem trabalho como também não a concebia sem religião. Levou a família inteira, até as noras e genros que já a chamavam de mãe, para a Igreja Batista, da qual sempre foi membro. Lá chegou a cantar, não perdia um culto.

Aposentou-se quase aos 70, e anos depois artrite e artrose vieram cobrar a conta de tantas décadas de esforço. Conviveu com a condição que a deixou acamada sem recorrer a remédios e tratamentos. Mas nem pernas tortas e nem joelhos inflamados a contiveram. Seguia lúcida, indo ao banheiro sozinha, dobrando roupas, cortando legumes e frutas, senhora do lar, ciente do local de cada uma das coisas. Os filhos organizavam-se para dar a ela a velhice que merecia.

Sua festa de 97 anos já era planejada, com a família de olho na de 100, quando Verdirema ficou doente pela primeira vez na vida. Uma otite no ouvido direito evoluiu no hospital até dar lugar à infecção que a levou.

A filha Auri abrira mão de tudo para estar ao lado da mãe na velhice. Agora Amilton, o filho que superou uma doença crônica na infância graças à dedicação total de Verdirema, jura cuidar da irmã até o fim da vida. E assim, o ciclo de carinho e amor estabelecido pela matriarca segue vivo.

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Ananete Rosendo

Enquanto viveu, Ananete manteve à vista algo como um norte para os seus dias: cuidar da família e de quem mais precisasse de ajuda. E essa foi a sua missão, desde o momento em que deixou a casa dos pais para se casar em Viçosa, interior de Alagoas, ainda aos 16.

O instinto maternal já falava alto e logo os filhos vieram: entre os primeiros anos na roça e a chegada a São Paulo fugindo da seca foram 11 crianças, das quais seis sobreviveram. Para elas ela dedicou um cotidiano repleto de pequenos atos de carinho.

Na cozinha, desdobrava-se preparando a comida do dia a dia, mas também delícias como feijão de corda, bolo de fubá e doce de leite caseiro. Na máquina de costura fazia a roupa dos pequenos e depois a engomava — vestidos para as três meninas, camisas para os três rapazes —, antes de levar os filhos e seus novos trajes para a escola e para a igreja.

À frente dos rebentos, cada pequena vitória era motivo para comemoração. Foi assim quando Aparecida, a filha mais velha, voltou para casa com as mercadorias da mercearia, mas também com o dinheiro. Que orgulho perceber que a família havia conquistado o privilégio de comprar na caderneta! Com Fábio, seu marido e grande companheiro, trabalhando duro na fábrica cabia a ela garantir que no lar tudo corresse da melhor maneira.

O bom caminho para os seus era pavimentado e apontado com alegria e leveza. Certa feita, fez os filhos comerem antes em casa para não passarem vergonha no jantar na casa de uma comadre. No menu daquela noite, arroz, feijão, purê e carne moída. Momentos depois, na amiga, exatamente a mesma comida. Educadas que eram, as crianças limparam os pratos e riram da coincidência depois.

Seu impulso de cuidar não ficava restrito às crias. Ananete carregava consigo também o dom de benzer, despertado aos oito anos com a avó quando ouviu dela que tinha como missão fazer caridade até o fim da vida. Acolhia vizinhos e conhecidos em suas dores e angústias e intercedia a por eles sem nunca cobrar por isso. Familiares precisando de ajuda também sabiam poder contar com o seu teto.

A devoção a Deus era total. Ela que puxava as preces antes de todas as refeições feitas com a família. À tarde, era o terço a lhe fazer companhia e dar propósito ao passar das horas.

A vida feliz e dedicada de Ananete chegou ao fim por complicações do diabetes quando ela tinha 64. Ao sentir que não mais resistiria, um último cuidado: orientou Aparecida a olhar pelo marido e garantiu que, saindo dali, a perna não mais doeria e ela correria pelos campos. Com a partida recente de seu grande amor, ganhou companhia no passeio.

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