Memórias de Vida

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José Edilberto de Souza Santos

José era corajoso porque não tinha medo de perder tudo. Simplesmente voltaria à sua condição inicial, começando do zero —  a vida colocou essa convicção à prova. Ao fim, perguntado pelo filho se ficou algo por realizar, pensou antes de responder: “Olha, Rafael, eu diria que nada. Fiz tudo, conquistei tudo. Pra não ficar uma coisa estranha eu falaria assim, sei lá, uma TV de 70 polegadas que queria comprar e nunca consegui”.

Otimista por natureza e pela sólida fé em Deus, aprendeu a gostar de São Paulo quando deixou Ibitiara, na Bahia, meio a contragosto aos nove anos com um de seus oito irmãos. Seriam ambos criados pela avó, Alzira, e por José Rodolfo, o Vô Deca. Na cidade grande encontraria outros amores e até deixaria de lado o sonho infantil de ser vaqueiro.

O seu processo de enraizamento paulistano é centrado em uma rua em especial. Na Belizário Pena, Vila Maria, foi criança com os avós; conheceu a futura esposa, Nanci; encontrou uma casa para sua nova família; e viveu até o fim da vida. Determinado, não sossegou até comprar o lar alugado lá e o reformar como sonhara.

Na residência viveram também seus três filhos: Raquel, Renata e Rafael. Nanci, formada em contabilidade, chegara com ele a um acordo: ela cuidaria das crianças enquanto ele ganharia o pão da família na rua. Os dois trabalhariam também juntos, às vezes entrando pela madrugada no incipiente, mas já bem-sucedido, negócio da família.

Foram duas décadas em uma empresa de transporte antes de se aventurar em algo próprio, a Receptive Service São Paulo, focada em turismo executivo. José orgulhava-se de ter construído com nada a empresa responsável pelo transporte de grandes astros como Madonna e Michael Jackson na passagem deles pelo Brasil.

Trabalhava muito e para os filhos dizia: “O que define as pessoas é o quanto elas são honestas e o quanto estão dispostas a trabalhar”. A desonestidade de um sócio foi seu traço determinante, por exemplo. José perdeu praticamente tudo em um golpe do parceiro e precisou recomeçar. Não seria desamparado por Deus e o sabia. Seguiu acordando com um sorriso e dizendo: “vamos lá, a gente precisa fazer o que precisa ser feito”. Funcionou.

O temperamento dele era difícil, marcado por certa dificuldade em ter a opinião contrariada ou mesmo mudar de posição. Mas também tinha aquilo que se pode chamar de nobreza, perceptível para quem conviveu consigo. Ajudava quem podia como missão de vida, e em seu enterro foi difícil encontrar quem não tivesse recebido auxílio seu.

Na despedida, sua característica mais marcante estava à mostra. Foi sepultado com a camisa do Corinthians em um caixão coberto com a bandeira do clube e ao som do hino do time no violino. Nada mais apropriado para alguém que tinha o escudo do Timão jateado nos vidros de casa e recusava-se a usar verde — proibia a cor em seu lar e uma vez chegou a desistir da compra de um carro para sua empresa porque o único modelo disponível vinha nas cores do rival, Palmeiras.

José ganhou a sonhada TV no fim, um presente dos filhos e da esposa um mês antes de sua partida por conta da leucemia. Nada mais faltava, até a família grande, completa com os netos Thiago, Beatriz, Lucas; e com o bisneto Pietro, teve a sorte de conquistar. Na última conversa com suas crias e a mulher, uma afirmação com som de vitória: “ganhei muito, perdi muito, acertei muito, errei muito, mas vivi”. 

José Edilberto de Souza Santos - TF AMARELO

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Suzete de Almeida Godoy

Quem teve a sorte de conhecer Suzete poderia expressar sua personalidade em duas características a princípio muito distintas entre si: era exigente, porém generosa.

Seus três filhos – duas mulheres e um homem – atestaram a primeira qualidade sem grandes dificuldades. Rígida, tomava para si a missão de colocar a educação dos pequenos, inclusive moral e ética, em primeiro lugar. Deles esperava dedicação à altura.

Já os 12 irmãos e mais de 40 sobrinhos puderam sentir o calor de sua segunda grande virtude na porta do apartamento em São Paulo, sempre aberta para a família. Vindos de Lorena, poucos não passaram ao menos algumas noites em sua casa. Os filhos se apertavam nos colchões para dar lugar aos primos, tudo virava diversão.

“Ela também adorava arrumar emprego para os outros, não podia ver um sobrinho sem. E pior que arrumava, tinha muita lábia, cativava as pessoas”, conta a filha Dulce.

Talvez fosse o reflexo de filha mais velha que movia Suzete na direção do cuidado e da generosidade com os seus. Criada em uma fazenda com outros 11 irmãos, viu seu pai morrer jovem, antes dos 50, e sua mãe perder a propriedade em uma disputa familiar.

Na época, por volta dos 18 anos, já estava casada e morando em Lorena. E em seu lar o clima era outro. Apaixonada, conquistara também o amor e a devoção de Arnoldo, que fazia todas as suas vontades.

“Ih, a Suzete é inventadeira de moda”, ele dizia antes de aquiescer a almoços especiais, passeios e até pequenas reformas. Era o início de um casamento feliz que durou 47 anos.

Seu marido trabalhava em uma fábrica de pólvora na vizinha Piquete, ela era secretária concursada de uma escola estadual. A vida correu, chegaram três filhos, e a aposentadoria dele foi a deixa para a família fazer as malas rumo a São Paulo.

Na cidade grande, transformaram-se ambos. Ele seguiu trabalhando como porteiro por mais 29 anos, até o fim da vida. Ela foi transferida para a Secretaria Estadual de Educação, de onde só saiu para voltar a ser secretária de escola, já no fim da carreira. Sentia falta das crianças.

A vida pacata de Suzete escondia outras duas características a princípio muito distintas: aventureira, sonhava em viver na estrada e viajou o quanto pôde e até onde a saúde permitiu. Apaixonada por política, amava ler e assistir jornais, ainda mais quando tinha com quem comentar as notícias.

Sonhos de viagens, exigência com as prioridades, interesse pela vida pública e generosidade ficaram para trás quando uma insuficiência respiratória a levou aos 92. Porém, três filhos, seis netos, seis bisnetos, dezenas de familiares e outros tanto sortudos lembrarão dela assim.

Suzete Almeida Godoy - TF Roxo

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Geovane Alves Monteiro

Alguns sonham com reinos futuros, paraísos distantes, mas Geovane já tinha o seu: era uma árvore, em frente de casa. Embaixo dela, mesinhas, bancos, cadeiras. Ao redor, os muitos amigos da vizinhança, gargalhando das suas piadas, ouvindo causos, despistando a tristeza e passando o tempo. A mini mercearia ao lado, aberta por ele mais pra distrair que para fazer dinheiro, cumpria a missão com louvor.

O temperamento suave, o humor contagiante e a maneira leve de olhar e de viver a vida eram seu cartão de visitas. E quem chegava não queria ir embora. Foi assim desde pequeno, em Olho d’Água das Flores, sertão de Alagoas. Órfão de mãe aos 10 anos, sem conhecer o pai e caçula de seis irmãos, virou o menino de recados da cidade e usava o carisma e a esperteza para tirar uns trocados.

Geruza, cinco anos mais nova, espiava a rua com a sua mãe, ambas admiradas com a tenacidade daquele garoto. Poucos anos depois seriam respectivamente esposa e sogra de Geovane que, um pouco mais crescido, mas com apenas 17 anos, decidiu ir para São Paulo encontrar emprego e estabilizar a vida para a chegada da mulher.

Os cinco filhos nasceram na nova cidade, onde ele já trabalhava como lavador de carros, vendia churrasquinho após o trabalho e já tinha até um novo amor: o Corinthians. O coração, porém, ficou na terra natal, para onde o casal ainda retornou duas vezes, na última delas para passar uma década. Ser conhecido no vilarejo ajudava a ganhar dinheiro levando para lá as novidades da cidade grande, como raspadinhas e esfirras.

Otimista incorrigível, nunca deixou de fazer planos. Com o coração debilitado, aos 80 anos, ainda soava como o jovem de 17 que veio para São Paulo atrás de uma ideia. “Geruza, vou comprar um terreno em Olho d’Água e fazer uma casa para fulano, beltrano e sicrano” — voltar em definitivo para o sertão foi o sonho que o peso da realidade não permitiu que se realizasse.

Mas a esperança inquebrantável e a capacidade de tirar os obstáculos da frente enterneciam amigos e também sua família, que o paparicava em resposta. Vô Godão, Tata e Goducho eram alguns dos apelidos que ganhara dos netos e bisnetos, assim como cortes de cabelo, um bom café passado e massagens quando os filhos o visitavam.

Geovane se foi, levado por um enfisema pulmonar. Seus cinco filhos, sete netos, seis bisnetos, amigos e vizinhos ficaram com memórias, com as histórias e principalmente com as lições de alguém que teve coragem de encarar de peito aberto a vida e escolher o que ela tem de melhor

Geovane Alves Monteiro - TF Cinza

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Claudio Lamberti

Claudio Lamberti era um homem de bem com a vida, daqueles que a gente conhece e, na hora, pensa: para este o destino sorriu. Afinal, encontrou e casou com seu grande amor ainda jovem. Foi pai coruja duas vezes, avô babão. Realizou até o sonho de ter uma casa de campo para curtir o passar das horas em paz. Mas nem sempre a vida foi fácil. Um tortuoso caminho se escondia no longo sorriso de Claudio.

Menino ainda, já labutava na roça em Regente Feijó, no Paraná, ajudando o pai e cuidando dos oito irmãos mais novos. A mãe se foi cedo, levada pela catapora, e deixou dois filhos órfãos quando ele tinha apenas três anos. Desde então ela o visitaria sempre — em pensamentos e sonhos — até o fim de sua vida.

Naqueles primeiros anos, porém, havia pouco tempo para saudade. Os meios-irmãos pequenos precisavam comer. E lá ia Claudio para a plantação, criança ele também, mas já sentindo sob os ombros, e na pele curtida de sol, o peso da vida adulta. Aos 18, partiu para São Paulo atrás de independência e de uma vida melhor. A família não ficou esquecida. Trouxe todos, até o pai e a madrasta, para a capital. Ele havia desbravado a selva de pedra. Agora, cuidaria dos seus.

Inteligente e bom de papo, não demorou a conseguir trabalho. Além do serviço oficial, na fábrica ou no banco, fazia seus bicos de pedreiro, de jardineiro, de motorista de transporte escolar. “Ele sempre tinha uns três empregos ao mesmo tempo”, lembra orgulhosa a filha Carla.

E Claudio tinha sorte. No cartório eleitoral onde trabalhou, foi colega da sogra antes mesmo de conhecer a esposa. Jurema, cinco anos mais nova e então com 21 anos, apareceu um dia para visitar a mãe, e o amor surgiu como quem não quer nada. Um papo aqui, um olhar ali e, de repente, eram os melhores amigos e os maiores companheiros um do outro.

Vieram as duas filhas, seguiu-se uma vida tranquila, conquistada a quatro mãos. A aposentadoria chegou precoce, aos 48 anos. Tanto suor caído no solo da roça, no chão da fábrica, não havia sido em vão. Quando viu o rancho em Itanhaém em seu nome, Claudio, mais uma vez, sorriu satisfeito. “Todo o meu esforço valeu a pena porque hoje eu tenho um chão”, costumava dizer . O sítio virou seu refúgio. Era seu hobby passar tempos ali sozinho, na sua paz, com suas plantas.

Mas nada se podia comparar ao prazer dos almoços de domingo com a família ao lado de Jurema, ouvindo música caipira. Quando ela partiu, aos 66, ficou desolado. Viveu mais um ano apenas. Morreu em 28 de junho, de complicações de cirrose e diabetes, aos 72 . Deixou duas filhas, um neto e a memória do sorriso satisfeito de quem batalhou, conquistou e dividiu. 

Claudio Lmberti

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