Em um dedo, o oxímetro media 46, muito abaixo do normal. No outro, a aliança de uma união conturbada, mas duradoura: 42 anos de casados. Naquela internação imediata precisou despir-se de todos os acessórios supérfluos: tirou os grampos do cabelo e passou o anel dourado ao dedo da filha caçula — está ali desde então. Foram as últimas interações de Sara com a mãe, Maria do Carmo, uma entre as milhares de vítimas da Covid-19 no Brasil.
Ao longo dos quase 80 anos em vida, foi mãe para muitos mais além de Sara. “Tenho filho coxo, filho cego, filho branco…”, costumava dizer com orgulho. O instinto maternal mostrou-se desde quando pequena. Primogênita entre 10, a infância de Maria foi marcada pelos cuidados aos irmãos. Eles a tinham como uma figura maternal, chamavam-na pelo apelido de “Inha”, uma redução do “Mariinha” pelo qual os pais a tratavam.
Ainda muito nova, teve de dividir o tempo de cuidados aos irmãos com o trabalho em uma tecelagem. Ali, encontrou o único e grande amor de sua vida, Osvaldo. Não foi um romance fácil, o início do namoro ficou marcado pelo racismo da sogra. “Ela dizia que minha mãe, negra, seria escrava do meu pai, branco”, conta Sara. Mas a paixão foi capaz de superar a discriminação e, aos 18 anos de Maria, casaram-se.
Pouco depois, por volta dos 20, teve de passar por uma prova de fé. Em uma época na qual a tuberculose ainda matava muitos no Brasil, Maria viu a mãe acometida pela doença. A jovem fez uma promessa: “Se o Deus dos crentes a salvar, me tornarei crente também”. Com a recuperação, tornou-se uma evangélica fervorosa, chegava a abrir sua casa para encontros da Igreja. “Uma das lições que ela me ensinou foi servir a Deus”, afirma Sara.
Essa foi apenas uma das provações de sua vida. Ainda em Recife, envolvido com amantes, o marido dela colocou tudo a perder. Mas nada abalava a fé de Maria do Carmo — ela acreditava na vinda de momentos melhores. Aos 30 anos, junto com alguns dos sete filhos, mudou-se para São Paulo. Primeiramente, viviam em uma comunidade, mas após muita batalha como auxiliar doméstica conseguiram comprar uma casa em um bairro melhor da cidade.
Na capital, Maria perdeu o marido e dois filhos, e a cada partida aumentava mais a sua devoção ao Senhor. Viajava para pregar e estava sempre a postos para servir. Além disso, os muitos filhos “adotivos” faziam de tudo para mantê-la ativa.
Despedir-se da mulher que sempre dava “a última palavra”, como bem lembra a caçula, não foi fácil para seus sete filhos de sangue, 12 netos, sete bisnetos e múltiplos filhos do coração. Infelizmente, não conseguiu realizar um de seus grandes sonhos, ver Sara formada em Pedagogia. A formatura só aconteceu dois meses após Maria perder a batalha contra o vírus. Entretanto, a jovem sente: independente de onde estiver, a mãe continua a olhar e a orar pelos seus.